O litígio entre a atriz e cantora Larissa Manoela e os pais – que, segundo ela, envolve uma fortuna de pelo menos R$ 18 milhões – joga holofote sobre os limites da gestão do patrimônio de menores de idade. Ao que tudo indica, porém, a melhor maneira de resolver esse imbróglio entre pais e filha será uma discussão de foro empresarial, e não familiar.
Especialistas ouvidos pelo Estadão ressaltam que a lei brasileira preza pela proteção de incapazes, o que inclui os menores de idade. Casos envolvendo menores não prescrevem, e o patrimônio da atriz começou a ser construído a partir de seus 4 anos de idade.
A questão é que muitos dos aspectos que podem ser questionados – como a divisão societária das empresas criadas pelos pais de Larissa Manoela – têm prazo de prescrição, que começaram a contar a partir da data em que a artista completou 18 anos. Atualmente, ela está com 22.
“Existem argumentos que dependem de tempo. Por exemplo, não corre decadência contra os incapazes, (mas) ela atinge maioridade aos 18 e talvez esteja na boca do prazo de quatro anos para anular por erro, dolo, coação ou lesão. Por outro lado, existem argumentos que podem ser montados para que isso tudo se paute em nulidade, por fraude alheia ou outros argumentos que envolvam proteção do menor, que não estão submetidos à prescrição ou decadência”, diz Gustavo Kloh, professor de Direito Civil e de Direito do Consumidor da FGV-Rio.
Sócio do escritório RMMG Advogados e com atuação em diferentes áreas, incluindo Direito de Família e Sucessões, Fabio Milman também aponta para a possibilidade de Larissa Manoela rever a divisão patrimonial da época em que ela era menor de idade. “Mas há uma remota hipótese de êxito, porque não está clara a existência de uma abusividade, pelo menos pelas declarações dela”, considera. Os pais da atriz também negam as acusações.
Antes de mais nada, é preciso ter em mente que a legislação brasileira é bastante rigorosa nos casos envolvendo artistas mirins. “Trabalho de criança, via de regra, é ilegal. Para poder ter uma criança atuando, é preciso de autorização da Vara da Infância e da Juventude, e os valores precisam ser integralmente exercidos em benefício da criança, em razão do princípio protetivo. Não há uma remuneração para o pai ou para a mãe como agentes da criança. São pai e mãe, eles cuidam da criança pelos deveres da parentalidade, que são estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil”, afirma Gustavo Kloh.
Tula Wesendonck, professora de Direito Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz uma ressalva. “É importante referir que esse caso trata de uma questão espinhosa e delicada, pois o exercício de uma atividade profissional artística de uma criança vai contar com o esforço e empenho da atriz e modelo mirim, e (também) do acompanhamento de seus pais. É natural que os pais se envolvam, tendo em vista que a criança não tem como desenvolver sozinha essas atividades”, pondera.
“No entanto, há uma linha tênue entre os pais exercerem uma função de acompanhante do desenvolvimento dessas atividades ou de exercerem somente a função de exploradores do talento dos filhos.”
Ela reconhece que os pais de artistas, muitas vezes, acabam abdicando de suas próprias carreiras profissionais para acompanhar os filhos. “Nesse sentido é coerente que recebam uma remuneração para esse acompanhamento, e não havendo acordo sobre esse valor o juiz deve definir.”
Tula explica, contudo, que a legislação civil brasileira determina que compete aos pais representar menores de 16 anos – ou assisti-los, caso eles tenham entre 16 e 18 anos. “Os pais têm não somente o poder, mas o dever legal de administrar os bens dos filhos até que atinjam a capacidade civil plena, pela maioridade ou emancipação”, afirma, ressaltando que no caso de menores de 16 a administração é exercida exclusivamente pelos responsáveis. “Para os relativamente incapazes (entre os 16 e 18 anos) os atos de administração dos bens devem ser decididos em conjunto entre pais e filhos.”
A lei também prevê que a obrigação dos pais é “preservar o patrimônio”. “No exercício da administração, os pais são responsáveis por preservar o patrimônio; eles não podem onerá-lo ou diminuí-lo”, ressalta a professora da UFRGS.
O uso dos bens é permitido, mas há limites. “O Código Civil diz que os pais são usufrutuários dos bens dos filhos, mas essa norma não pode ser interpretada de uma forma distorcida. Por exemplo, se um filho ganha um videogame ou uma TV, não há nenhum absurdo que o pai use esse videogame ou essa TV. Os pais podem usar os bens dos filhos, mas eles não podem interpretar que isso deva se estender aos recursos financeiros oriundos de um trabalho”, sustenta Gustavo Kloh, da FGV-Rio.
“O limite é a preservação do patrimônio. Preservar não tem problema nenhum, o problema é gastar. Comprar imóveis, criar um patrimônio preservável, é ok, inclusive morar dentro do imóvel. A questão toda é que foi feito um desenho societário que implica em transferência de patrimônio para os pais: montaram empresas, o dinheiro passou a ser recebido em nome das empresas, e em uma delas a participação majoritária não é dela. Isso importa em transferência de patrimônio para os pais”, acrescenta ele.
Fabio Milman também considera que esse é um ponto que poderá ser discutido judicialmente. “Se a formatação dessa empresa veio em detrimento aos interesses da Larissa Manoela, ou de qualquer criança, pode ser revisto. Qualquer negócio jurídico, como um contrato, uma formatação de uma empresa, e com uma criança como sócia – não importa com qual porcentagem -, se ela se mostrar ilegal ou abusiva, pode ser revista”, pontua o advogado.
Revisão de contratos deverá ser o caminho
Na entrevista ao Fantástico, Larissa Manoela disse que quer ter maior controle sobre sua carreira, ainda que as sociedades que ela tenha com os pais – e que foram assinadas à época em que era menor – não permitam.
Sobre isso, Milman explica que a lei brasileira prevê que vale o que está escrito no contrato, mas desde que ele preencha uma série de requisitos. Caso contrário, há espaço para questionamentos.
“Há algo que se chama aqui no Brasil de ‘vício de consentimento’ – por exemplo, no caso de uma criança, de um menor, cuja vontade é exercida e representada pelos pais. Se os direitos são de uma pessoa física, quando ela atinge os 18 anos ela passa a ser gestora automática de seus interesses. Se os direitos de imagem, os direitos de uma marca, pertencem a uma empresa do qual esse incapaz, quando completa 18 anos, era sócio, a partir daí ele tem que ter uma movimentação para dentro da empresa, e eventualmente questionar e retirar da empresa o que é um patrimônio de marca personalíssimo seu.”
Para Gustavo Kloh, a discussão deve terminar mesmo na esfera empresarial. “Não é situação sem solução, não. Está delimitada no tempo, estamos compondo um passado. Hoje a Larissa Manoela é maior e os pais são apenas parentes, não tem ingerência jurídica sobre ela. O que existe são problemas envolvendo sociedades, e isso tende a se resolver com facilidade”, considera.
Ele rechaça que esse seja um caso de violência patrimonial, tema que ganhou força nas redes sociais. Houve até mesmo quem tenha sugerido que poderia ser enquadrado na Lei Maria da Penha.
“O que ela vai conseguir com isso? Os pais serem proibidos de chegar perto dela? Que os pais paguem dez cesta básicas? Isso não resolve nada. Acho que o caminho é o da recomposição patrimonial pela via empresarial”, diz Kloh. “Acho essa discussão de violência patrimonial totalmente exagerada numa situação como essa.”
Fabio Milman, por sua vez, lamenta o litígio familiar. “Essa situação da Larissa Manoela não é inédita, a gente acompanha ao longo do tempo pela mídia, especialmente nos Estados Unidos, carreiras de crianças que depois acabam entrando em conflito com os pais”, lembra.
“Infelizmente é comum, inclusive com uma inversão que a vida acaba propondo, que é quando os filhos maiores passam a cuidar dos pais velhinhos. Também surgem muitas vezes conflitos e questões de natureza patrimonial, econômica, financeira. A solução desses conflitos acaba sendo muitas vezes dolorosa, quando se estressa ao máximo e acaba parando no Judiciário.”