Como passar mais tempo lendo, quando não há tempo para passar
Estive recentemente em um bazar beneficente e havia uma prateleira de livros, que eram gratuitos, diferente do restante dos produtos do bazar. O evento foi feito em um bairro de realidade social carente e os livros acabaram nas primeiras poucas horas depois de os portões terem sido abertos.
Essa observação prática desbanca uma ideia do senso comum de que “pessoas pobres não leem”. Ideia inclusive reproduzida pelo ministro da cultura Paulo Guedes, usada como argumento para taxar livros. Em um olhar ainda mais aproximado, vi ainda que as pessoas não apenas pegaram os livros, mas leram seus títulos, conjecturaram sobre seus conteúdos e, por fim, convenceram a si mesmos de que deveriam ler.
Se os livros serão lidos ou não, só o futuro dirá. Mas o livro, muito além de um bem de consumo luxuoso, caro e que, supostamente, só as classes sociais mais elevadas têm acesso e interesse (como uns e outros pensam), é um artigo de transformação pessoal — e isso é encarado dessa forma pela maioria das pessoas que alcançaram alguma maturidade.
Porém, ler demanda tempo. É preciso alguma dedicação, da mesma forma que nos dedicamos às telas de cinema e tv durante ao assistir filmes e séries. Dedicação deve soar estranho neste parágrafo, porque normalmente não é uma palavra usada no contexto do lazer.
Mas, quantos problemas psicológicos poderiam ser evitados se pudéssemos nos concentrar mais dedicadamente ao nosso lazer, em vez de simplesmente descansar do trabalho para estar pronto para trabalhar de novo depois?
Existe uma matemática simples aqui: dizer que uma pessoa que trabalha 44 horas por semana e ganha um salário mínimo (R $1100,00) ainda deve ter tempo de sobra para ler é simples, mas quase nunca as coisas são bem assim.
A conta começa a ficar complicada quando temos de fazer subtrações do tempo de leitura — 48,3 % dos jovens que trabalham também estudam. Ou seja, são 8 horas de um dia de trabalho mais algumas de estudo. E em geral, as locomoções que essas demandas exigem são feitas por transporte coletivo, em cujo tempo gasto costuma ser bastante longo, especialmente em cidades grandes. E, a julgar pela qualidade geral do transporte público, não proporciona muito conforto para ler qualquer coisa.
Em suma, a conta do tempo não fecha.
Em seu ensaio “O Direito à Literatura”, Antonio Candido afirma várias vezes sobre o poder de construção da humanidade que a leitura de literatura e de como estar destituído do universo da literatura pode representar uma espécie de mutilação daquilo que nos faz humanos.
Dificilmente, alguém cuja realidade é trabalhar e estudar consegue negociar para conseguir mais tempo para ler e, caso consiga, provavelmente usará as sobras do relógio para descansar ou cumprir com outras prioridades.
Democratizar a leitura não passa apenas pela popularização do seu acesso, também é importante criar condições para que essa leitura aconteça e expandir o tempo que as pessoas têm para ler é essencial.
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