De acordo com dados da ONU, no Brasil, 25% das meninas entre 12 e 19 anos deixaram de ir à aula alguma vez por não ter absorventes
O veto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à distribuição de absorventes para mulheres carentes pegou muito mal até em setores que costumam apoiar o governo, como os partidos do Centrão, e está motivando esforços em vários níveis para tentar recuperar o prejuízo de imagem.
Depois de a ministra Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos, recuar do discurso inicial e dizer que planeja um programa para distribuir esses itens básicos de higiene, um representante do Ministério da Saúde, o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, alega que, embora o governo tenha “interesse total” em abraçar a ideia, não sabe de onde tirar recursos. “Prioridade é o que mata”, afirmou Câmara em entrevista ao Metrópoles.
Para o auxiliar do ministro Marcelo Queiroga, a prioridade no investimento de recursos insuficientes deve ser em ações que ele considera mais urgentes. “É óbvio que o interesse é total, inclusive eu sou ginecologista, eu sei que isso é um problema grande. A questão é de onde vai vir o recurso. O dinheiro do SUS não brota, a gente tem um orçamento de R$ 143 bilhões, e quando qualquer programa novo entra alguma coisa tem que sair”, argumenta o gestor.
“Então, a gente tem uma questão de prioridade, prioridade é o quê? É o que mata, é o que adoece”, completa.
Apesar de não matar, a falta de absorventes é um problema grave para milhões de mulheres carentes, sobretudo para aquelas em idade escolar, que muitas vezes faltam às aulas por não se sentirem seguras no período menstrual. Atualmente, uma em cada quatro brasileiras não tem acesso a absorventes, aponta o relatório Livre para Menstruar, do movimento Girl Up – uma iniciativa global da Organização das Nações Unidas que busca promover a igualdade de gênero – em parceria com a empresa Herself.
Dados dos quais o secretário de Atenção Primária à Saúde duvida: “Não sei se repararam que é uma pesquisa feita por indústria de absorventes. Então, assim, é um conflito de interesse tão grande, um viés tão grande”, avalia Raphael Câmara. Ainda assim, o secretário avalia que “o mérito é excelente”, mas pondera: “A questão é: vamos tirar de onde? O governo está sendo extremamente responsável em fazer os estudos. Porque dizer que vem do SUS não quer dizer nada”, argumenta, dialogando com o texto aprovado pelo Congresso e vetado pelo presidente, que aponta as verbas da saúde pública como origem de recursos para tirar do papel a distribuição.
Bolsonaro também usou esse argumento para justificar seu veto e tentar fugir das críticas: “É irresponsabilidade apresentar um projeto sem apontar a fonte de custeio. Isso é feito proposital, para desgastar. Por que o PT não fez isso quando estava no poder?”, questionou o presidente na última semana, referindo-se ao fato de o projeto aprovado ter sido apresentado pela deputada federal Marília Arraes (PT-PE).
No veto publicado no Diário Oficial da União (DOU), em 7 de outubro, o chefe do Executivo federal argumenta que o projeto de lei determinando a distribuição dos absorventes em escolas contraria o interesse público, “uma vez que não há compatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino. Ademais, não indica a fonte de custeio ou medida compensatória”.
Raphael Câmara ressalta ainda que, para ocorrer a implementação da distribuição dos absorventes, o assunto tem que ser “levado a sério. Tem que ter dinheiro pra todo ano. Então você tem que ter uma política, e essa política passa a ter uma rubrica anual. Não é uma coisa: tem em 2022 e não tem em 2023, isso não existe. Se a gente fizer isso tem que ser preso”.
Marcelo Queiroga
Na semana passada, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também opinou sobre os absorventes e disse ao Metrópoles que a questão da pobreza menstrual no Brasil é “crônica” e que o assunto será tratado em conjunto com a ministra Damares Alves.
“Na realidade, o que nós queremos são políticas públicas que não necessariamente sejam em função do Sistema Único de Saúde. Eu e a ministra Damares Alves vamos buscar alternativas de políticas públicas que não venham por meio de legislação”, afirmou, apesar da possibilidade de o Congresso derrubar o veto ser alta.
“Nós entendemos que o Congresso Nacional fez isso com a melhor das intenções, né? A ministra [Damares] hoje já enviou uma mensagem para mim. Nós vamos conversar para atender as pessoas em relação a isso”, completou.
Questionada sobre o andamento do assunto dentro do ministério, a assessoria de imprensa afirmou, na sexta-feira (15/10), que não há previsão para o início das tratativas e que não há dados oficiais sobre a pobreza menstrual no Brasil.
Na última quarta-feira (13/10), após defender o veto em algumas ocasiões, a ministra Damares Alves anunciou pelo Instagram um programa de distribuição gratuita de absorventes a mulheres em situação de vulnerabilidade social.
De acordo com a ministra, o programa é discutido “há meses” e será lançado “nos próximos dias”. Antes, no entanto, Damares apoiou o veto à distribuição gratuita de Bolsonaro e chegou a questionar, ironicamente, se a prioridade seria “vacina ou absorventes”.
Repúdio
O veto de Bolsonaro causou repúdio nas redes sociais e repercussão política. A bancada do PSol na Câmara, por exemplo, apresentou uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) contra o presidente. A carta classificou os vetos do chefe do Executivo federal de “desumanos” e “ultrajantes”.
“A falta de absorventes higiênicos leva garotas a perder aulas e a alternativas precárias e insalubres, que incluem o uso de papelão, sacolas plásticas e até pedaços de pão”, diz a carta assinada pela líder do partido na Casa, Talíria Petrone, com apoio do partido e de outras deputadas. “Até para os padrões mais baixos, é ultrajante”, seguiu o texto, que acusou Bolsonaro de violar compromissos internacionais e desmantelar políticas públicas para mulheres no Brasil.
O documento pediu que a ONU divulgue um posicionamento sobre o caso e cobre explicações do governo brasileiro. O documento foi endereçado a três autoridades das Nações Unidas: Michelle Bachelet, alta comissária para os Direitos Humanos; Reem Alsalem, relatora especial para Violência Contra a Mulher; e Tlaleng Mofokeng, relatora especial para o Direito à Saúde.
No Rio de Janeiro, a Lei nº 9.404/21, sancionada pelo governador Cláudio Castro (PL), autoriza o Poder Executivo a distribuir gratuitamente absorventes nas escolas estaduais. No entanto, a medida ainda não tem data para entrar em vigor.
No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha (MDB) sancionou, em janeiro, o projeto de lei para a distribuição gratuita do item. Dez meses após a publicação, porém, a lei ainda não é aplicada.
Pobreza menstrual
De acordo com a Unicef, pobreza menstrual é a situação vivenciada por meninas e mulheres devido à falta de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento para que tenham plena capacidade de cuidar da sua menstruação
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, 25% das meninas entre 12 e 19 anos deixaram de ir à aula alguma vez por não ter absorventes.
Saiba mais sobre veto de Bolsonaro
Apesar de ter sancionado a Lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (Lei 14.214/2021), Bolsonaro vetou os principais pontos da proposta. A justificativa do governo foi que a iniciativa do legislador contrariam o interesse público.
O Projeto 4968/2019, da deputada federal Marília Arraes, aprovado pelo Congresso Nacional, previa a distribuição gratuita de absorventes femininos para estudantes de baixa renda, mulheres em situação de vulnerabilidade de rua e recolhidas em unidades do sistema prisional.
Por não haver compatibilidade com a autonomia das redes de estabelecimento de ensino, não indicar fonte de custeio do Programa ou medida compensatória em violação a Lei de responsabilidade fiscal, o Art. 6º também foi vetado.
Ele determinava que as despesas com a execução das ações previstas na Lei ocorreria por conta das dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, dizia de onde viria o dinheiro do custeio para a medida.
O objetivo do Projeto era combater a precariedade menstrual, ou seja, a falta de acesso a produtos de higiene e a outros itens necessários ao período da menstruação, considerados fundamentais e imprescindíveis.
Os vetos ainda serão analisados pelo Congresso Nacional, podendo ser mantidos ou derrubados. Para a rejeição do veto, é necessária a maioria absoluta dos votos de deputados, sendo 257 votos e dos 41 dos senadores.
Com informações de Metrópoles