Na última semana, governo federal e Congresso deram aval a medidas que driblam regras orçamentárias e a lei eleitoral a poucos meses de milhões de brasileiros irem às urnas.
Na visão dos analistas, os projetos aprovados flexibilizam e enfraquecem as normas fiscais e contribuem para tornar a disputa deste ano desigual, tanto na esfera do Executivo como na do Legislativo.
“Eu acho que nunca houve um desapreço tão grande pela disciplina orçamentária como esta que vemos neste momento”, afirma Gil Castello Branco, diretor-executivo da Associação Contas Abertas. “Esse pleito, talvez, seja um dos mais injustos desde a redemocratização do país.”
As alterações nas regras orçamentárias e fiscais abrem espaço para que os candidatos à reeleição a diferentes cargos possam ser beneficiados com mais recursos públicos.
Quais sãos as medidas:
. Na terça-feira passada (12), no mesmo dia em que o Congresso Nacional aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, os parlamentares também deram aval a um projeto de lei que permite doações em período eleitoral e altera o Orçamento deste ano, liberando o governo de cumprir com os seus compromissos de restos a pagar de 2021.
Na construção orçamentária, os restos a pagar são recursos provenientes do ano anterior que estão empenhados, ou seja, têm destino certo, mas que ainda não deixaram os cofres do governo. A mudança aprovada pelos políticos, que ainda precisa ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, diz que esses recursos podem ser direcionados a outras áreas.
Em nota conjunta, as consultorias de Orçamento da Câmara dos Deputados e do Senado afirmaram que a mudança implica “uma dissimulada prorrogação do prazo de vigência dos orçamentos”, desrespeitando o princípio da anualidade orçamentária.
. No dia seguinte, os parlamentares aprovaram a proposta de emenda à Constituição (PEC) Kamikaze, que colocou o país em estado de emergência para permitir novos benefícios sociais em ano de eleição. O custo estimado, fora do teto de gastos, é de R$ 41,2 bilhões. O texto amplia o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, dobra o benefício do vale gás e cria um voucher de R$ 1 mil para caminhoneiros autônomos. Também prevê um auxílio para taxistas, compensação para os estados para atender a gratuidade de transporte para idosos, entre outros.
“Em algum momento, os interesses dos poderes Executivo e Legislativo se alinham. E os estragos nas legislações fiscal e eleitoral acontecem exatamente quando se encontram as vontades do Executivo e de uma maioria legislativa, que é o que tem ocorrido no país desde 2021”, diz Rafael Cortez, analista político e sócio da consultoria Tendências.
Perda de poder do Executivo
O que os especialistas dizem é que essas mudanças que driblam as leis e banalizam as regras fiscais têm como pano de fundo uma discussão maior: a perda de poder do Executivo nas decisões orçamentárias do país.
Esse movimento não é novo e vem de um maior empoderamento do Congresso Nacional, que nos últimos anos passou a dominar a pauta legislativa e boa parte do Orçamento discricionário, aquele que não tem execução obrigatória.
Nos corredores do Congresso, parlamentares são quase unânimes em dizer que o Executivo virou uma espécie de rainha da Inglaterra, com poderes apenas figurativos. E que a alocação do dinheiro e a pauta política são decididas, de fato, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
“Vemos um movimento cuja direção é de perda de protagonismo do Executivo no desenho e, sobretudo, na execução da legislação orçamentária”, afirma Cortez, da Tendências. “Nessa luta, quem paga o pato são as instituições fiscais.”
Durante o governo Bolsonaro, por exemplo, foram aprovadas cinco alterações no teto de gastos, a principal âncora fiscal do país, que desde 2016 limita o crescimento das despesas da União.
Congresso tem pauta e dinheiro na mão
Levantamento da consultoria Action, feito a pedido da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, mostra que 67% dos projetos aprovados no Congresso em 2021 foram de autoria do Legislativo, enquanto 33% partiram do Executivo. Em 2012, o cenário era o oposto: 70% dos textos aprovados eram de iniciativa do governo e 30% provenientes dos parlamentares.
E o Legislativo não tem apenas a pauta na mão, mas também o dinheiro. “Esse custo de apoio ao presidente foi se tornando cada vez mais caro. Esse ano, por exemplo, o conjunto de emendas parlamentares soma mais de R$ 35 bilhões, sendo que 16,5 bilhões são de emendas de relator”, afirma Castello Branco, da Associação Contas Abertas.
As emendas de relator ficaram conhecidas como orçamento secreto, por terem pouca transparência em relação aos critérios de distribuição. Essa verba bilionária, segundo levantamento feito por g1, GloboNews e TV Globo, fica concentrada nos parlamentares do chamado Centrão, bloco político que dá sustentação ao governo Bolsonaro.
Presidentes enfraquecidos e um Congresso poderoso
A perda de protagonismo do Executivo vem acontecendo ao longo da última década, mas ganhou tração a partir de 2015, com a promulgação da PEC do Orçamento Impositivo.
A proposta tornou obrigatória a execução pelo governo das emendas individuais, ampliando o poder do Congresso. Em 2019, foi a vez das emendas de bancada, que também se tornaram uma despesa fixa. E, na semana passada, os parlamentares tentaram fazer o mesmo com as verbas de relator, que devem somar cerca de R$ 19 bilhões no ano que vem. Em meio a pressões, porém, o Legislativo recuou e decidiu jogar o debate para o segundo semestre.
Nesse ano decisivo de 2015, quem comandava o palácio do Planalto era Dilma Rousseff. Uma presidente enfraquecida, que lidava com os efeitos políticos da Operação Lava Jato e com uma severa crise econômica. Como consequência, a petista não conseguiu apoio parlamentar para evitar o impeachment, em agosto de 2016.
Ela foi condenada sob a acusação de ter cometido crimes de responsabilidade fiscal – as chamadas “pedaladas”. Em seguida, o ex-presidente Michel Temer (MDB) viu a sua governabilidade abalada depois da deleção envolvendo executivos da empresa JBS.
Governo com dificuldade
Os analistas dizem que o cenário de fortalecimento do Congresso em relação ao Orçamento dificilmente será revertido. “Qualquer governo terá uma enorme dificuldade em alterar essas práticas, porque os parlamentares estão com um poder que nunca tiveram, então eles não vão aceitar mudanças”, alerta Castello Branco.
Segundo ele, o primeiro grande embate da próxima gestão, seja ela qual for, será tentar fazer com que o Legislativo reduza parte dos privilégios adquiridos nos últimos anos. “Agora, acabar com eles, isso eu não vejo como possível.”
Outro lado
Procurados, o Ministério da Economia e o deputado Carlos Gaguim (União-TO), relator do projeto de que permite doações em período eleitoral, não se manifestaram até a publicação dessa reportagem.
Em nota, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou que a PEC que ampliou os benefícios sociais “não altera a lei eleitoral, que já prevê a hipótese de estado de emergência, entre as exceções para a concessão de benefícios diretos à população”. Em relação ao projeto de lei que permite doações em período eleitoral, a assessoria do parlamentar apontou que o relator do projeto destacou que a medida “confere maior eficiência ao gasto público e evita prejuízos ao funcionamento de órgãos e entidades da administração pública federal”.
Já o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, disse que “todas as decisões foram tomadas pelas mais democráticas instâncias da vida pública brasileira, os plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” e que “toda e qualquer deliberação do Legislativo está sujeito ao controle constitucional do Supremo Tribunal Federal, conforme a Constituição, através do sistema de freios e contrapesos.”
“Já o presidente Bolsonaro fez uma opção por não fazer uma coalização. Mas quando faz, faz na condição de preservar o mandato”, afirma Cortez, da Tendências. “Não é uma coalizão positiva. É uma tentativa de evitar a perda de mandato e isso abre ainda mais espaço ao Poder Legislativo para influenciar o Orçamento.”
Com Bianca Lima e Luiz Guilherme Gerbelli, GloboNews e g1.