Investigação parlamentar tem a função de trazer à luz questões relevantes para o debate público; no aspecto jurídico, no entanto, sua atuação é limitada
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) tem “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” e pode encaminhar suas conclusões ao Ministério Público para que ele “promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”, segundo a definição estabelecida no artigo 58 da Constituição Federal de 1988.
O perfil investigativo, e não condenatório, pode gerar dúvidas em quem assiste aos depoimentos de testemunhas e espera que as eventuais acusações se tornem efetivamente um processo criminal ou civil, o que nem sempre acontece.
A CNN ouviu especialistas para esclarecer quais são os limites de atuação e as implicações práticas de uma comissão como a CPI da Pandemia, iniciada em abril no Senado para investigar ações e omissões do governo federal e os repasses de verbas federais para estados e municípios no contexto do combate à covid-19.
Para quê serve exatamente a CPI?
A CPI é uma das comissões temporárias que podem ser criadas no Poder Legislativo para tratar um determinado assunto – no caso específico da Comissão Parlamentar de Inquérito, uma investigação sobre uma questão relevante e específica. Ela tem prazo definido de 90 dias, prorrogável pelo mesmo período.
A Comissão Parlamentar de Inquérito costuma gerar repercussão e pode servir como holofote para a investigação de possíveis atos ilícitos realizados na administração pública.
“A CPI serve tanto para verificar se o Legislativo está efetivamente legislando, cumprindo a sua função, quanto para fiscalizar outros Poderes”, define Gabriela Zancaner Bandeira Mello, professora de direito constitucional da PUC-SP e autora do livro “As Competências do Poder Legislativo e as Comissões Parlamentares”.
Para instaurar uma CPI, basta a assinatura de um terço dos parlamentares (deputados ou senadores, na esfera federal). Isso faz dela uma oportunidade para que a minoria questione agentes públicos e os coloque em situação de constrangimento. Essa é a visão de Rubens Glezer, professor de direito constitucional da FGV, que ressalta que as CPIs só podem ser compreendidas dentro de uma perspectiva política, e não jurídica.
“Há uma sensação generalizada de que a CPI acaba em pizza, mas essa é uma má compreensão sobre sua função. A CPI serve para trazer à luz questões importantes para o debate público”, diz o jurista.
O que a CPI pode efetivamente fazer?
Ela pode convocar ministros de Estado e autoridades públicas e colher depoimentos e documentos relacionados ao fato que é objeto de investigação. A comissão também pode usar outras medidas, como a requisição de informações e documentos de repartições públicas e a solicitação de perícias, exames e vistorias.
A Comissão Parlamentar de Inquérito pode, também, pedir a quebra do sigilo bancário, fiscal ou telefônico de investigados. Ela não tem, no entanto, o poder de realizar grampos ou escutas telefônicas. “Seus instrumentos de investigação são amplos, mas não totais, como um processo judicial”, afirma Glezer.
A conclusão da CPI aparece em seu relatório final, que pode apontar ou não a existência de crimes cometidos e sugerir o indiciamento de suspeitos. Ela também pode motivar a criação ou revogação de leis para atender às demandas da sociedade em relação ao tema investigado.
Qual o limite da CPI em termos jurídicos? Ela pode condenar alguém por atos ilícitos?
Não. Novamente, a função da CPI é somente investigatória. Os parlamentares integrantes de uma comissão não têm o poder de julgar nenhum agente público. “No campo jurídico, ela é limitada”, resume Glezer.
O relatório final da CPI, reunindo tudo que foi apurado no inquérito, pode ou não servir como motivação para uma denúncia do Ministério Público, Advocacia-Geral da União ou outro órgão investigativo. Este inquérito posterior, no entanto, tem total autonomia em relação ao relatório final da CPI.
Gabriela Zancaner analisa que é esse poder limitado da CPI que causa a impressão de que as comissões terminam sem resultados práticos. “Quem decide pelo prosseguimento de indiciamentos ou investigações é o Ministério Público. Não há penalização por parte do Legislativo; seu poder é apenas para elaborar o relatório. Se ele será usado em um inquérito ou denúncia, cabe ao Ministério Público decidir”, explica a professora.
Ela ressalta, no entanto, que o envio do relatório ao Ministério Público é um passo “lógico” da CPI, caso ela entenda que houve irregularidade nos fatos investigados.
Quais seriam os efeitos práticos de um relatório de CPI que sugere o indiciamento de pessoas?
Caso o relatório da CPI seja utilizado como base para uma investigação do Ministério Público ou outro órgão judicial, os acusados estão sujeitos a responder judicialmente a ele. No caso de uma denúncia de crime, por exemplo, a Justiça pode condená-los a cumprir penas ou medidas de restrição de liberdade. Se o acusado for enquadrado em um ato de improbidade administrativa, ele está sujeito a punições previstas na esfera cível.
Se a CPI sugerir o indiciamento de um militar, ele pode ser investigado pela Justiça Comum ou Militar?
A Justiça Militar é responsável por investigar atos cometidos pelos militares apenas no exercício de sua função. Ou seja: se ele for acusado de um crime fora de sua atividade militar, a investigação é de competência da Justiça comum.
Isso valeria, por exemplo, para o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que é general da ativa do Exército e uma das principais testemunhas da CPI da Pandemia. Caso os membros da comissão recomendem algum tipo de punição a Pazuello por sua atuação como ministro, uma eventual investigação ficaria a cargo da Justiça comum.
A CPI pode cassar parlamentares?
Não. Apenas os Conselhos de Ética da Câmara ou do Senado têm o poder de cassar ou suspender direitos parlamentares. A CPI, no entanto, pode recomendar esse tipo de punição em seu relatório final.
“Nem mesmo o Judiciário, a não ser em situação muito específica, tem o poder de cassar os parlamentares, que têm suas garantias previstas na Constituição”, ressalta a professora da PUC.
E com relação ao presidente da República?
No caso de uma investigação envolvendo o presidente da República, há dois caminhos que podem ser seguidos caso a CPI recomende sua responsabilização. Se houver denúncia de que o presidente tenha cometido crimes comuns, uma eventual investigação fica a cargo da Procuradoria-Geral da República, que é a autoridade máxima do Ministério Público Federal.
Se concluir que o presidente cometeu um crime comum, a PGR oferece uma denúncia ao Supremo Tribunal Federal, corte responsável pelo julgamento do chefe do Executivo.
Caso o relatório aponte que o presidente da República cometeu crime de responsabilidade, ele pode enfrentar a abertura de um processo de impeachment na Câmara dos Deputados e, posteriormente, um eventual julgamento pelo Senado Federal.
A decisão de pautar ou não a votação de uma abertura de processo de impeachment, no entanto, é monocrática e pertence ao presidente da Câmara. “É um processo mais político do que jurídico, que depende das forças que compõem o Parlamento”, ressalta Gabriela Zancaner.
Apenas o Ministério Público ou a Advocacia-Geral da União podem assumir investigações relacionadas ao relatório final da CPI?
Não. Segundo Rubens Glezer, da FGV, o Supremo Tribunal Federal prevê que o relatório final da CPI pode ser remetido a qualquer órgão que a comissão entenda como cabível para promover uma responsabilização nas esferas cível ou criminal.
Ele também ressalta que os órgãos de investigação não dependem do relatório das CPIs para promover qualquer inquérito relacionado aos temas investigados. “Esses órgãos têm amplos poderes de investigação. No caso da Polícia Federal ou do Ministério Público, por exemplo: não há subordinação de um sobre o outro. Eles podem cooperar para evitar que as investigações se atrapalhem, mas têm autonomia e independência.”
Qual a diferença entre um depoente ser convocado para a CPI como testemunha e não como investigado?
Há jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que impedem uma testemunha de não comparecer a uma CPI caso ela tenha sido convocada. Os investigados, no entanto, podem escolher não comparecer à comissão.
Integrantes da CPI da Pandemia optaram por convocar ex-ministros da Saúde como testemunhas para garantir que eles colaborem de alguma forma com a comissão, conforme disse o senador Humberto Costa (PT-PE) à CNN.
Na condição de testemunha, o depoente é obrigado a dizer a verdade diante da comissão. Isso não significa, no entanto, que ele precise se comprometer em responder todas as perguntas. Se considerar que uma questão pode incriminá-lo, o depoente tem o direito de permanecer em silêncio, assim como qualquer investigado.
“Essa estratégia de colocar o convocado como testemunha não significa, necessariamente, que ele irá falar alguma coisa”, diz a professora da PUC. “O direito de não produzir provas contra si mesmo está no ordenamento jurídico brasileiro.”
Segundo Rubens Glezer, essa estratégia de convocar o indivíduo como testemunha parece mais política do jurídica. Afinal, por mais que o depoente tenha o direito ao silêncio, o ato de não responder a perguntas comprometedoras pode gerar grande repercussão.
“Do ponto de vista jurídico, o direito ao silêncio não pode ser considerado prova de nada. Mas o silêncio vale muita coisa no tribunal da opinião pública. Dependendo da pergunta ou do contexto, é quase uma confissão”, analisa.