Mais de um ano e meio após o início das ações de atualização do Cadastro Único, municípios brasileiros ainda estão atrasados na tarefa, considerada essencial para garantir a focalização de mais de 2.000 programas sociais que usam a base de dados federal como porta de acesso a seus benefícios.
O indicador de atualização do cadastro estava em 88% em agosto, considerando famílias de baixa renda de todo o país (que ganham até meio salário mínimo por pessoa, equivalente a R$ 706). Alguns locais, porém, sustentam indicadores abaixo de 70%, em descompasso com a média brasileira.
Um índice de atualização elevado não significa, por si só, que o cadastro tem boa qualidade, mas evidencia que nem sequer o primeiro passo foi dado na tentativa de direcionar as políticas sociais a quem realmente precisa.
No início de setembro, o ministro Wellington Dias (Desenvolvimento Social) afirmou à Folha de S.Paulo que há a possibilidade de os prefeitos terem reduzido o ritmo da atualização cadastral de olho nas eleições municipais.
“É como se estivesse parado por conta do ano eleitoral. É a impressão que eu tenho. Mas quando não faz a revisão, o passo seguinte é ter um bloqueio. E ter um bloqueio também causa desgaste”, disse.
A cidade mais atrasada é Virgolândia (MG), cidade de 4.530 habitantes situada a 365 km de Belo Horizonte. Lá, havia em agosto 831 famílias cadastradas em situação de baixa renda, e a atualização alcançou 61,13%.
O atual prefeito, José Ismar de Assis Neto (MDB), foi reeleito no último domingo (6) com 64,39% dos votos. A reportagem tentou contato com a prefeitura por e-mail e mensagem de texto, mas não obteve retorno.
Cidade capixaba na lista
Um município do Espírito Santo apareceu entre as dez cidades mais atrasadas. Linhares, no Norte do Estado, está com 72,39% dos cadastros realizados.
A secretaria municipal de Assistência Social de Linhares informou, por nota, que o prazo estipulado pelo Governo Federal para o recadastramento das famílias no Cadastro Único é a cada dois anos. Só depois do final deste prazo é que o município deve fazer busca ativa das famílias que não fizeram a atualização cadastral.
A pasta também informou que trabalha rotineiramente para que as famílias sejam assistidas e mantenham os respectivos cadastramentos em dia.
“Um destes exemplos são os vários mutirões realizados aos fins de semana com o objetivo de agilizar o recadastramento e aproximar o serviço do seu público-alvo”, ressaltou.
A secretaria afirmou que, até o fim do ano, outros mutirões estão previstos para que todas as famílias sejam recadastradas dentro do prazo estipulado.
Municípios maiores
Não são apenas cidades menores que estão atrasadas na atualização do CadÚnico. Em Jundiaí (SP), o indicador estava em 72,57% em agosto. O município tem 460,3 mil habitantes e 10,1 mil famílias de baixa renda inscritas no cadastro
Eleito pela primeira vez em 2016, o atual prefeito, Luiz Fernando Arantes Machado (PL), não pode mais se reeleger, mas seu vice, Gustavo Martinelli, lançou-se pelo União Brasil. Ele teve a candidatura indeferida, mas recorreu da decisão e, se conseguir revertê-la, terá lugar na disputa em 2º turno, após reunir 43,34% dos votos.
A prefeitura disse, em nota, que a baixa atualização do cadastro se deve, principalmente, à dificuldade de contato com as famílias e ao aumento da demanda pelo serviço de assistência, especialmente após a retomada de bloqueios e cancelamentos de benefícios no pós-pandemia.
“Além disso, as recentes alterações nos procedimentos cadastrais estabelecidas pelo governo federal, como a obrigatoriedade de visitas domiciliares, têm impactado nossa capacidade de atualização”, afirmou.
A prefeitura disse ainda ter aumentado em 100% sua equipe dedicada à gestão do cadastro entre 2023 e 2024. O município planeja nova ampliação de 50% nos próximos meses.
A prefeitura não respondeu se houve alguma redução de ritmo na atualização cadastral relacionada ao período eleitoral.
Cadastro termina em março de 2025
O governo federal iniciou as ações de atualização do Cadastro Único em março de 2023. As medidas envolvem cruzamento de dados de renda, convocação de famílias e visitas domiciliares. Um dos principais problemas detectados foi a explosão de famílias unipessoais, com apenas um integrante, a partir de outubro de 2021.
O diagnóstico do atual governo e de especialistas em políticas sociais é que o pagamento mínimo de R$ 600 por família, instituído pelo Auxílio Brasil durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), incentivou a divisão artificial de famílias em busca de um repasse maior para o lar.
Em dezembro de 2022, o governo observou o auge do número de famílias unipessoais recebendo o Bolsa Família (5,9 milhões). O número caiu para 3,9 milhões em maio de 2024, mas voltou a subir, alcançando 4,05 milhões em agosto.
O pesquisador Marcelo Neri, diretor da FGV Social, diz que os dados de 2023 da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) indicam um crescimento da renda das famílias com o Bolsa Família e outras políticas sociais ante 2022. Mas há também indicativos de maior focalização do programa.
Numa escala que vai de -1 (benefício concentrado nos mais pobres) e 1 (benefício para os mais ricos), o Brasil saiu de -0,446 em 2022 para -0,466 no ano passado. “É um sinal de que, apesar da expansão [do programa], tem essa melhora na focalização”, diz.
Segundo Neri, o resultado é expressivo. Na escala, uma mudança de 0,03 seria “muito significativa”, mas a diferença de 0,02 representa dois terços disso. “O atraso é uma defasagem nesse processo [de focalização]”, alerta.
Ele não descarta o efeito colateral das eleições sobre o ritmo de avanço na tarefa. “Bolsa Família é uma parceria, não no financiamento, mas na operação. Quem localiza o pobre e cadastra são os prefeitos. Ao mesmo tempo, não pode deixar os prefeitos de regiões pobres, que precisam, sem o financiamento. É razoável que seja assim, embora tenha efeitos colaterais que precisam ser trabalhados”, diz.
Neri ressalta ainda que integrar o Cadastro Único hoje é uma vantagem ainda maior do que no passado, uma vez que o registro se tornou porta de entrada para um número cada vez maior de benefícios e também será requisito para ter acesso ao cashback (devolução de tributos) da reforma tributária.
VEJA O ÍNDICE DE ATUALIZAÇÃO DO CADASTRO ÚNICO DOS MUNICÍPIOS MAIS ATRASADOS
Dados para o mês de agosto de 2024, considerando famílias de baixa renda (até meio salário mínimo por pessoa)
– Virgolândia (MG) – 61,13%
– Mirim Doce (SC) – 64,36%
– Camacho (MG) – 68,33%
– Serra da Saudade (MG) – 70,27%
– Arco-Íris (SP) – 70,83%
– Santa Salete (SP) – 71,63%
– Linhares (ES) – 72,39%
– Jundiaí (SP) – 72,57%
– Pimenta (MG) – 73,02%
– Fartura do Piauí (PI) – 73,22%
– Campos Novos (SC) – 73,24%
– Caxias (MA) – 73,29%
– São Sebastião da Bela Vista (MG) – 73,31%
– Louveira (SP) – 73,74%
– Águas de São Pedro (SP) – 74,19%
– Meleiro (SC) – 74,24%
– Doresópolis (MG) – 74,53%
– Cerquilho (SP) – 74,60%
– Brasil – 88%