Quatro anos após um caso que chocou o país, a família de uma jovem capixaba de 14 anos relembra os desafios enfrentados após a gravidez resultante de um estupro cometido por seu tio quando ela tinha apenas 10 anos. Em entrevista ao programa “Fantástico”, da TV Globo, a família, que pediu anonimato por questões de segurança, reafirmou que “criança não pode ser mãe”.
O caso ganhou ampla repercussão em 2020, quando a menina, após ser vítima de abuso por anos e ameaçada pelo agressor, precisou lutar na Justiça para interromper a gestação indesejada. A avó da jovem, que tem a guarda e a considera como filha, relatou o drama vivido durante o processo, incluindo protestos de grupos religiosos e a invasão de sua residência.
“Um religioso veio até mim, dizendo que estava pecando ao permitir o aborto da minha filha. Eu respondi que quem decide por ela sou eu. Se ela não queria continuar, eu também não queria”, desabafou a avó.
O episódio revelou também falhas no sistema de saúde local. O Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória, se recusou a realizar o procedimento, alegando “normas técnicas”, o que levou a família a buscar assistência em Pernambuco, a mais de 1.600 quilômetros de casa.
O diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, responsável pelo aborto legal da jovem, criticou as barreiras impostas pelo sistema de saúde capixaba. “Ela já foi estuprada. Ela não quer continuar a gravidez. A avó percebeu abaixo de 20 semanas. Mas ela foi obstruída de ter acesso ao serviço em Vitória”, afirmou.
Atualmente, o Brasil permite o aborto em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia fetal. No entanto, o debate sobre a legislação tem se intensificado com o Projeto de Lei 1904/24, que propõe punição severa para o aborto após a 22ª semana de gestação, mesmo em situações de estupro.
O caso no Espírito Santo
Em 2020, a menina, então com 10 anos, foi estuprada pelo tio em São Mateus, na Região Norte do Espírito Santo. De acordo com a Polícia Militar (PMES), após a denúncia, feita em agosto daquele ano, a menina deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares, acompanhada de um familiar, informando ter sido vítima de estupro e alegando estar grávida.
Segundo a jovem, ela era vítima do crime desde os 6 anos e era constantemente ameaçada pelo tio, que fugiu após a descoberta do caso, sendo preso cerca de duas semanas depois em Minas Gerais, quando foi indiciado por estupro de vulnerável e por ameaça.
Na época, dados da criança estavam circulando na internet. Após intervenção da Justiça do Espírito Santo, o Google Brasil, o Facebook e o Twitter retiraram as informações da jovem do ar, logo após pedido da Defensoria Pública do Estado.
Como mostra reportagem do g1 Espírito Santo, a criança “apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer”.
Maioria da bancada capixaba é a favor do PL 1904
Após a Câmara Federal aprovar, na última quarta-feira (12), o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, a proposta vai seguir para votação no plenário sem passar pelas comissões. Se avançar, ainda terá que ser apreciada pelo Senado. Mas, no que depender da bancada capixaba, a maioria defende aumentar a punição para a interrupção da gravidez, inclusive nos casos de estupro.
Chamado de PL do aborto, o projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e mais 32 parlamentares — entre os quais os capixabas Evair de Melo (PP) e Gilvan da Federal (PL) —, altera o Código Penal, que hoje não prevê punição para aborto em caso de estupro, nem estabelece restrição de tempo para o procedimento nessas situações. O código também não pune o aborto quando há risco de morte para a grávida ou se o bebê é anencéfalo.
Com exceção desses casos em que não há punição, o código prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da grávida; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.
Caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todas as situações, incluindo a gravidez resultante de estupro. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples e maior do que a estabelecida para quem pratica estupro, que é reclusão de 6 a 10 anos.
O que é discutido em Brasília?
Em Brasília, sede do governo federal, o assunto divide opiniões na Câmara dos Deputados e no Senado. Segundo Arthur Lira, presidente da Câmara, o PL ainda não foi aprovado, e terá uma relatora mulher.
“O tema é polêmico. Se não tiver apoio, ele não será aprovado, ele não será sequer discutido. O relator, que eu já fiz compromisso com a bancada feminina, que nesse projeto será uma parlamentar moderada, que não defenda posições nem pró e nem contra”, diz Lira.
Do outro lado, no Senado, o presidente Rodrigo Pacheco afirma que todos os trâmites serão respeitados.
“Um projeto dessa natureza, que é evidentemente de matéria penal e que guarda de fato muita divisão, muita polêmica, é muito importante se ter cautela em relação a ele. Evidentemente, um projeto dessa natureza teria o caminho de se incluir dentro do bojo da discussão de código penal no Senado Federal, ou ao menos a submissão às comissões permanentes da casa para que haja um amadurecimento em relação a ele.”
O presidente Lula (PT) também se manifestou e criticou o PL 1904. Durante o encerramento da cúpula do G7, na Itália, Lula afirmou que é contra o aborto e que o assunto deve ser tratado como questão de saúde pública.
“Acho que é insanidade alguém querer punir a mulher em uma pena maior do que a do criminoso que fez o estupro. É no mínimo uma insanidade isso”, disse o presidente.