Ler não é apenas virar páginas e não é fácil descobrir isso sozinho
Escolher um livro. “Ler”. Escrever um resumo. Apresentar para a turma. Durante algum momento do meu ensino fundamental, era assim que fazíamos atividade de leitura e, como estamos perto do início das aulas, é válido pensar por que esse tipo de atividade cria novos leitores tanto quanto o açúcar cura a diabetes. E como podemos pensar em algo diferente.
O problema central desse modelo de atividade é que ele torna a pequena vontade de ler, que crianças de 11 a 14 anos não têm, ainda menor. Lembrando que estamos falando da regra aqui, se você conhece ou convive com uma criança que é a exceção disso, guarde-a num potinho e preserve-a desse mundo. Eu, por exemplo, gostava de ler, amava a biblioteca, mas nessas atividades não entrava no grupo dos excepcionais e bem disciplinados leitores. Sempre preferi ler o que e quando tinha vontade a cumprir exigências. Uma anarquia criada e alimentada pela leitura que, ironicamente, desfavorecia a própria leitura, porque existe um descompasso enorme entre algo ser prazeroso e obrigatório: geralmente, ou é obrigatório, ou é prazeroso — nunca os dois. Assim, recordo-me de uma vez ter emprestado um livro curtinho, 90 páginas se muito, chamado “Casa, Família e Cia”. Fui obrigado a começar e terminar a leitura em um domingo, porque a obra já estava passeando na minha mochila desde segunda-feira e no dia seguinte teria de devolvê-la para apresentar o bendito resumo.
O resultado dessa experiência de leitura é que eu posso descrever muito bem a capa do livro; uma ilustração predominantemente marrom e com uma moça de pele pálida sentada em frente a um tabuleiro de xadrez, suas páginas brancas e irritantes e o fato de algumas delas terem decidido se separar do restante do livro que ia desmontando nas minhas mãos e que a cada 15 ou 30 minutos de leitura eu recontava o que faltava ler pra saber se já estava acabando. O que eu não posso dizer sobre a obra com certeza são informações banais como do que se tratava e quem a tinha escrito. Não me recordo. Falei recentemente na minha newsletter (aqui) que a experiência de ler nunca se resume apenas a virar um montante de páginas, existem outros fatores marcantes que vão desde o lugar, o momento e atmosfera durante a leitura, até as pessoas e sentimentos que nos impulsionaram a ler ou desistir do livro e quais ideias e sensações surgiram durante e depois de terminado o processo.
Essas experiências até mesmo sensoriais podem ser fascinantes ou repulsivas, e existem ainda pessoas que não chegam a sentir a leitura dessa forma por não conviverem o suficiente com os livros, as histórias e a palavra escrita. Isso tudo não lhes diz respeito — é um lugar ao qual não frequentam. Dessa forma, vivendo em uma sociedade cuja escola compreende alguns anos da vida de quase todos os cidadãos, e sendo ela responsável por alfabetizar a maioria das pessoas, não é exagero considerar que existe bastante poder dentro desse espaço e nas mãos de seus atores para criar esse tipo de experiência de fascínio ou repulsa e também para aproximar aqueles a quem a letra escrita não diz respeito.
Olhando por essa perspectiva, veremos que o fascínio promove inclusão e a repulsa ou indiferença o oposto.
Um professor memorável que tive dizia que ninguém pode dar aquilo que não tem. O fascínio capaz de enredar os outros é o fascínio que primeiro nos enredou. Ou seja, é difícil criar experiências profundas de leitura sem ter passado por algo do tipo. Justamente por isso, estimular esse desejo pela leitura é algo complexo, mesmo que não seja impossível, porque o ato de ler, apesar de evidentemente benéfico, é contraintuitivo. Especialmente na atualidade, quando acumulamos tarefas ao mesmo tempo em que inúmeras telas nos lançam imagens e sons freneticamente. Nesse contexto, dedicar-se exclusivamente a uma página com letras que formam ideias abstratas que precisam do nosso processo cognitivo, imaginativo e criativo para fazerem sentido é absurdo e até mesmo revolucionário.
Assistir a um vídeo enquanto faço uma refeição é prático, posso ouvir um podcast enquanto lavo a louça ou faço compras e a TV fica ligada no canal de notícias o dia inteiro. Talvez este texto esteja como segundo plano de outra atividade sua, talvez a outra atividade esteja em segundo plano neste momento, mas o fato é que esta provavelmente não é a única aba aberta no seu navegador de internet e dificilmente você está com este texto salvo exclusivamente para lê-lo — se for o caso, porém, muito obrigado!
Por outro lado, o que o exercício leitor oferece é a contramão do afã das outras mídias. Não há opção de leitura, especialmente nos livros, que não seja uma batalha contra a ansiedade, porque só podemos ler uma frase por vez, para depois lermos o parágrafo, então a página, então o capítulo e então o livro todo de uma capa a outra. Nesse momento, o auxílio que a escola pode oferecer são leitores mais experientes que conhecem os entraves dos leitores menos experientes e podem conduzi-los para vencerem seus obstáculos. Quem já construiu o andar de cima do andaime, ajuda quem está embaixo.
Ler não precisa ser uma tarefa totalmente solitária, sua prática e aprendizagem podem ser colaborativas, através de figuras que apontem as leituras mais adequadas, avaliem características específicas, ajudem o neófito a compreender ideias e termos novos, incentivem e direcionem pesquisas em dicionários, sites, canais do Youtube, podcasts e de onde mais se possa extrair informações para ampliar o horizonte de compreensão do leitor menos experiente. Não é necessário abandonar as mídias digitais para ler melhor, apenas reposicioná-las, contendo seu frenesi.
Por fim, é possível que a leitura e sua necessidade nunca tenham sido tão onipresentes em nossas vidas quanto neste mundo tenebroso, imparável e multimidiático. E é justamente por causa disso que às vezes a tomamos por garantida, como se fosse algo inerente ao ser humano e não uma habilidade adquirida através de práticas que, inclusive, mudam conforme os tempos. Talvez, o papel das escolas nesse momento seja muito mais o de chamar a atenção para essa leitura viva e capaz de conectar informações e acontecimentos, ao invés daquela leitura morta, cujo principal objetivo é virar um resumo e uma apresentação pra ganhar uns pontinhos a mais no boletim e, quem sabe, talvez, por um acaso, levar o leitor a aprender alguma coisa..
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