O jornalista e cineasta capixaba Ramon Luz participa em junho da Semana da Língua Alemã no Brasil, a convite dos Institutos Goethe de São Paulo e de Porto Alegre. O evento, realizado anualmente desde 2016 pelas embaixadas da Alemanha, Suíça, Áustria, Luxemburgo e Bélgica, tem uma programação nacional voltada à promoção da cultura e do idioma alemão.
No dia 5 de junho, às 12h30, Ramon conversa ao vivo com o Goethe-Institut de São Paulo sobre suas experiências como brasileiro migrante e cidadão naturalizado na Alemanha. Ele compartilhará os desafios e aprendizados de sua trajetória acadêmica e profissional, além de reflexões sobre identidade, pertencimento e a atual ascensão da extrema direita no país europeu. “Vamos falar disso com muita sinceridade”, anunciou pelas redes sociais.
Já no dia 7 de junho, às 10h30, o Goethe-Institut Porto Alegre exibe ‘Familiar Face’, documentário dirigido por Ramon em Berlim. O filme narra a chegada de um refugiado sírio gay à capital alemã e sua busca por acolhimento em meio à hostilidade. A exibição será seguida de bate-papo ao vivo com o diretor direto de Berlim, que abordará os bastidores do projeto, sua vivência como bolsista e o cotidiano em um país que, segundo ele, ainda enfrenta desafios para reconhecer suas diversidades migratórias.
Segundo Ramon, o filme foi motivado pelo contexto de sua chegada ao país europeu, onde vive há 8 anos. “Fazia pouco mais de um ano desde que o governo alemão declarou como bem-vindas milhões de pessoas fugindo da guerra na Síria. O país começava a se perguntar se tinha feito o correto e o preconceito contra os refugiados sírios crescia. Como eu já sabia que a Alemanha não é o paraíso que pintam e também tem problemas, me perguntei se especificamente refugiados gays estavam mesmo saindo de um mundo restritivo e homofóbico na Síria para viver livres e felizes por aqui. A resposta está no filme”, explica ele em entrevista ao Em Dia ES.
De Montanha à Alemanha
Natural de Montanha, no norte do Espírito Santo, Ramon Luz conta que sua jornada na Alemanha envolveu importantes conquistas, mas também episódios de racismo e exclusão. Entre os aspectos positivos, ele destaca o aprendizado da língua alemã como ferramenta de autoconhecimento. “Foi muito positivo descobrir como eu aprendo, aprender sobre como eu funciono por meio do desafio que foi aprender a falar alemão”, relata.
Contudo, o racismo enfrentado, inclusive por parte de brasileiros no exterior, deixou marcas. “Ruim foi o racismo, a ignorância de muitas pessoas frente ao que não é branco, inclusive vinda de conterrâneos que vivem aqui”, diz. “Encontrei muitas pessoas que nunca tinham visto alguém como eu antes. Algumas reagiram de maneira desrespeitosa, tocando meu cabelo, me fotografando às escondidas e me seguindo na rua”, completa.
“Eu gostaria de ter sabido antes, entre outras coisas, que é possível, para alguém com a minha história, realizar o sonho de fazer um mestrado em Comunicação fora de sua língua materna. No Espírito Santo, eu não sentia que um dia poderia me tornar mestre”, comenta Ramon.
Naturalizado alemão, ele vê sua nova cidadania como o fim de um ciclo de autoexclusão. “As repetidas visitas ao departamento de estrangeiros para renovação de vistos te informam, de tal maneira, que você é passageiro nesse cenário, que você acaba acreditando. Como cidadão alemão, não existe mais o ‘eles’ versus o ‘eu’, pelo menos não no sentido burocrático. Tenho autonomia para participar do debate político e ajudar a tomar decisões pelo país”, explica.
Para ele, sua história é uma resposta à extrema direita: “Num momento em que grupos de extrema direita querem retomar o controle e reafirmar a natureza branca da Alemanha, me sinto preparado para testemunhar contra isso com a minha história. A existência de um alemão de pele marrom, nascido em Montanha, no Espírito Santo, por si só desafia esses grupos. Muito antes de mim, a Alemanha já era diversa. Falta apenas ouvir melhor essas vozes dentro do país”, afirma.
A mudança para o país europeu foi viabilizada pela bolsa German Chancellor Fellowship, que Ramon define como decisiva para sua trajetória. “
Depois de já ter sido repórter, assessor de imprensa e editor-chefe, eu me tornei, de repente, diretor de um documentário em Berlim. Aprendi a lidar com um orçamento limitado para realizar um projeto. Aprendi a cuidar da identidade e dos sentimentos de sobreviventes de guerra. Acessei o sistema de ensino da Alemanha para me tornar mestre em Comunicação Política, em alemão. Entrei para uma emissora que produz jornalismo em mais de 30 línguas e é respeitada internacionalmente”, relata.
Aos capixabas que desejam seguir um caminho semelhante, Ramon recomenda investir no inglês e buscar orientação com quem já trilhou trajetórias parecidas.
“Entre em contato com uma pergunta já muito bem pensada, depois de fazer a sua pesquisa. Mostre que você leva a sério o seu sonho e aprendeu tudo que pôde sobre ele. Mas também aconselho governantes, professores e quem mais tiver poder de ajudar quem precisa: abram os olhos para o potencial de quem é pobre. Sem oportunidades, ninguém se desenvolve. Abra uma porta. Convide. Financie. Financie de novo. Ajude.”
Diversidade e protagonismo não branco
Para Ramon, a Alemanha ainda tem um longo caminho a percorrer no reconhecimento de suas diversidades migratórias. “Falta muita coisa, mas principalmente protagonismo não branco na política”, afirma. Ele destaca a necessidade de pautas que contemplem também os que ainda não dominam a língua alemã: “É necessário ver, nos discursos dos grandes partidos alemães, temas que toquem pessoas e famílias migrantes do país. Temas que façam sentido também para aqueles que não falam alemão, por exemplo.”
A arte, segundo ele, é uma ferramenta poderosa para reconstruir narrativas e ampliar o imaginário coletivo sobre imigração. “Documentar vivências migrantes na Alemanha, também em suas faces positivas, ajuda a informar melhor o imaginário”, afirma. “Uma arte alemã que centralize as virtudes de migrantes, que empreteça o herói, que abra os olhos para esse desequilíbrio, não seria um presente, é um direito, uma justiça”
Serviço:
Palestra online com Ramon Luz
Data: 5 de junho
Horário: 12h30 às 13h30
Local: Goethe-Institut São Paulo (evento online)
Inscrição neste link.
Informações: [email protected] / (11) 3296-7000
Exibição do curta Familiar Face e conversa com o diretor Ramon Luz
Data: 7 de junho
Horário: 10h30 às 14h
Local: Goethe-Institut Porto Alegre – Rua 24 de Outubro, 112, Porto Alegre/RS
Evento presencial com participação virtual do diretor, ao vivo de Berlim
Entrada gratuita
Informações: (51) 2118-7800
Confira a íntegra da entrevista com Ramon Luz abaixo
EM DIA ES ENTREVISTA: Ramon Luz
1. Ao divulgar sua participação na Semana da Língua Alemã, você menciona que vai compartilhar o que foi bom, o que foi ruim e o que gostaria de ter sabido antes de se mudar para a Alemanha. Quais seriam esses três pontos principais?
Sobre minha experiência migrante na Alemanha, digo que foi muito positivo descobrir como eu aprendo, aprender sobre como eu funciono por meio do desafio que foi aprender a falar alemão. Ruim foi o racismo, a ignorância de muitas pessoas frente ao que não é branco, essa vinda até mesmo de conterrâneos que vivem aqui. E eu gostaria de ter sabido antes, entre outras coisas, que é possível, para alguém com a minha história, realizar o sonho de fazer um mestrado em Comunicação fora de sua língua materna. No Espírito Santo, eu não sentia que um dia poderia me tornar mestre.
2. Você se naturalizou alemão. O que isso significa para você, especialmente considerando o atual crescimento da extrema-direita no país?
Receber a cidadania alemã fechou em mim um ciclo de autoexclusão. As repetidas visitas ao departamento de estrangeiros para renovação de vistos de estadia te informam, de tal maneira, que você é passageiro nesse cenário, que você acaba acreditando. Como cidadão alemão, não existe mais o “eles” versus o “eu”, pelo menos não no sentido burocrático da coisa. Tenho autonomia para participar do debate político e ajudar a tomar decisões pelo país. Num momento em que grupos de extrema-direita querem retomar o controle e reafirmar a natureza branca da Alemanha, me sinto preparado para testemunhar contra isso com a minha história. A existência de um alemão de pele marrom, nascido em Montanha, no Espírito Santo, por si só desafia esses grupos. Muito antes de mim, a Alemanha já era diversa, só falta ouvir melhor essas vozes dentro do país.
3. Que tipo de desafios ou preconceitos você enfrentou por ser latino e LGBTQIA+ na Alemanha?
Em meu caminho aqui, encontrei muitas pessoas que nunca tinham visto alguém como eu antes. Algumas reagiram de maneira desrespeitosa, tocando meu cabelo, me fotografando às escondidas e me seguindo na rua. Esses episódios foram de racismo. No campo das latinidades, apenas ouvi alguns comentários estereotipados sobre como nós, latinos, somos desordeiros, falamos alto, somos corruptos. A esses comentários, respondi categoricamente com exemplos desses comportamentos em pessoas europeias. E não me lembro de já ter sofrido qualquer preconceito homofóbico na Alemanha.
4. Como foi a sua experiência na German Chancellor Fellowship? Que portas essa bolsa abriu na sua carreira?
O German Chancellor Fellowship mudou a minha vida. Depois de já ter sido repórter, assessor de imprensa e editor-chefe, eu me tornei, de repente, diretor de um documentário em Berlim. Aprendi a lidar com um orçamento limitado para realizar um projeto. Aprendi a cuidar da identidade e dos sentimentos de sobreviventes de guerra. Acessei o sistema de ensino da Alemanha para me tornar mestre em Comunicação Política em alemão. Entrei para uma emissora que produz jornalismo em mais de 30 línguas e é respeitada internacionalmente. Sem o German Chancellor Fellowship, esse caminho de que tenho tanto orgulho teria permanecido distante do que era possível para mim.
5. Você mencionou que a bolsa foi decisiva para estar aí hoje. Que conselho você daria para capixabas que sonham em estudar e pesquisar na Alemanha?
Meu conselho a qualquer pessoa que queira estudar e pesquisar fora do Brasil é, claro, que invista em aprender inglês. Que torne isso uma prioridade até onde for possível, mesmo que tenha que aprender sozinho, tarde da noite, como eu fiz. Essa língua abre os nossos olhos para muitas oportunidades que poderiam passar despercebidas e aumenta o campo daquilo que podemos aprender. Outro conselho seria o de não ter medo de contatar quem você admira ou quem está onde você gostaria de estar. Mas contate com uma pergunta já muito bem pensada, depois de fazer a sua pesquisa. Mostre que você leva a sério o seu sonho e seguiu aprendendo sobre ele até onde pôde. Mas também aconselho governantes, professores e quem mais tiver poder de ajudar quem precisa: abram os olhos para o potencial de quem é pobre. Sem oportunidades, ninguém se desenvolve. Abra uma porta. Convide. Financie. Financie de novo. Ajude.
6. Seu documentário Familiar Face será exibido na programação do Goethe de Porto Alegre. Pode nos contar como surgiu a ideia do filme? Por que contar a história de um refugiado sírio gay em Berlim? O que te motivou a trazer essa perspectiva?
Quando me inscrevi para o German Chancellor Fellowship, em 2016, fazia pouco mais de um ano desde que o governo alemão declarou como bem-vindas milhões de pessoas fugindo da guerra na Síria. O país começava a se perguntar se tinha feito o correto, e o preconceito contra os refugiados sírios crescia. Como eu já sabia que a Alemanha não é o paraíso que pintam e também tem problemas, me perguntei se, especificamente, refugiados gays estavam mesmo saindo de um mundo restritivo e homofóbico na Síria para viver livres e felizes por aqui. A resposta está no filme.
7. Na sua visão, o que ainda falta para que a Alemanha reconheça de fato suas diversidades migratórias?
Falta muita coisa, mas principalmente protagonismo não branco na política. É necessário ver, nos discursos dos grandes partidos alemães, temas que toquem pessoas e famílias migrantes do país. Temas que façam sentido também para aqueles que não falam alemão, por exemplo.
8. Como você vê o papel da arte e da cultura, especialmente o cinema, na construção de novas narrativas sobre imigração e pertencimento?
A cultura dá vida à imaginação do mundo ideal. Documentar vivências migrantes na Alemanha, também em suas faces positivas, ajuda a informar melhor o imaginário. No momento, ele está lotado de figuras descompensadas, histórias sobre crimes, violência, ilegalidade. Só as pesquisas sobre como pessoas muçulmanas são retratadas na mídia alemã já comprovam esse desequilíbrio narrativo. É injusto sermos pasteurizados sob esses títulos, como se fôssemos uma massa homogênea e corrupta. Uma arte alemã que centralize as virtudes de migrantes, que empreteça o herói, que abra os olhos para esse desequilíbrio não seria um presente, é um direito, uma justiça. E seria mais interessante.
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