O silêncio da sala de leitura não tem nada de triste ou solitário
Quando cheguei ao ponto, ela já estava lá, sentada e esperando o ônibus. Tinha algumas sacolas nas mãos e os cabelos presos em um coque meio relaxado, charmoso. Vez ou outra nos esbarramos na cidade e eu me recordo dela com muito carinho, embora ela talvez nem saiba mais quem sou eu — compreensível, afinal, devem ter sido tantos alunos, todos os dias, durante alguns anos. E eu entre eles. “Tia” Sônia foi a primeira bibliotecária da minha vida ainda na primeira série do Ensino Fundamental. Registrou os meus primeiros empréstimos no livro preto da biblioteca. Foi ela quem apontou a prateleira dos livros infantis, que eu podia pegar. E também foi ela que possivelmente fez vista grossa quando comecei a pegar os infanto-juvenis antes da hora.
Dessa biblioteca, li alguns volumes da série Vagalume, como O Escaravelho do Diabo, Vidas Sem Rumo (o primeiro best seller) e lembro de uma vez ter tomado emprestado Crônica da Casa Assassinada — que nunca li de verdade, mas andava com a capa à mostra por aí por causa do efeito do título nos adultos. Os olhares de reprovação eram uma espécie de combustível, um atestado (falso) do mau comportamento de um jovem ratinho de biblioteca.
O engraçado é que de dois em dois anos, eu volto a esse colégio — é minha zona eleitoral. E ele sempre me parece um pouco menor, causando uma sensação muito singular, pois, consigo ver ao mesmo tempo duas escolas completamente diferentes: uma, com a visão de hoje, já não tão grande e a cada encontro diminuindo ainda mais e a outra, imensa e ligeiramente assustadora, remontando os primeiros anos escolares passados ali. Lembro-me, especialmente, do corredor no primeiro piso, o qual, ao fim, possuía uma porta azul marinho com a palavra “BIBLIOTECA” grafada em caixa alta, com tinta branca pintada à mão. O caminho que aprendi até essa biblioteca não foi muito diferente dos caminhos que me levaram para as outras.
Houve, então, a biblioteca do Ensino Médio, a da faculdade e também a Biblioteca Municipal Antonio Azevedo Lima, que hoje frequento bem menos do que eu gostaria. Nesta última biblioteca — que está aposentando minha ficha porque ganhou um sistema informatizado de empréstimos e reservas, li alguns ensaios sobre Graciliano Ramos em um livro que, tenho certeza, só existe lá; fui apresentado ao termo “ideologia” por Marilena Chauí e, além disso, descobri um lugar na cidade onde poderia ler, escrever e estudar. Boa parte dos meus sucessos acadêmicos foram alcançados ali. Muito do que eu já escrevi também veio de lá.
Todos esses relatos servem para mostrar como a Biblioteca é um lugar afetivo e que alimenta um afeto ainda maior: os livros.
Felizmente, ler e procurar entender as coisas em dicionários, atlas, revistas, jornais e alguns livros sempre foi tão parte da minha rotina que eu não saberia dizer quando exatamente isso começou. A biblioteca foi uma extensão natural desse mundo de papel. Mas, infelizmente, essa não é a realidade de muitas pessoas no Brasil. Segundo uma pesquisa de 2019, 31% dos entrevistados disseram que não leem muito e não se interessam por livros e em média 26% das pessoas perguntadas não chegaram a comprar nenhum livro no ano anterior ao da pesquisa. Em estudos recentes, constatou-se a diminuição do analfabetismo, embora haja grupos menos alcançados pela alfabetização do que outros. Também chama a atenção que a evasão escolar, que vinha diminuindo até 2019, tenha crescido significativamente graças à pandemia. Talvez esses três dados sejam uma tentativa de medir o vão que existe entre possíveis leitores e o universo das páginas. E se os dados parecerem frios demais, basta pensarmos em quantas pessoas dos nossos ciclos sociais integram alguma dessas porcentagens. Quantos deles talvez nunca tenham sequer entrado em uma biblioteca.
Mas não é por falta de caminhos até os livros que as pessoas não os leiam, talvez precisemos de mais proatividade na promoção da leitura como parte do cotidiano, perdendo o senso do ato de ler como algo maçante, exibindo-o como um entretenimento tão prazeroso quanto assistir séries e filmes — que, aliás, costumam ser amplamente baseados nos livros. É sempre um bom momento para instigar esse tipo de reflexão justamente porque hoje existem muitas crises causadas por leituras deficitárias. Seria muito interessante ter organizadas as bibliotecas, suas equipes e frequentadores, fazendo tentativas de levar esse espaço às pessoas e também de trazê-las para mais perto. Guardar o silêncio da biblioteca apenas para o salão de leitura, mas em suas ações comunitárias, procurar conversar com seu público no intuito de compreender suas necessidades, aproximando novos e antigos leitores de leituras antigas e novas.
Para isso, outras atividades, como clubes do livro, rodas de leitura, hora do conto, sessões de autógrafo, lançamentos e saraus podem ser feitas para promover encontros cheios de diversidade, gerando um sentimento de pertencimento ímpar, não só em relação ao lugar, mas também ao grupo de pessoas que participam ali. Todo mundo que frequenta bibliotecas, no fim das contas, está buscando mais ou menos as mesmas coisas e, quando o silêncio não precisar ser respeitado, provavelmente, um diálogo aparecerá. Frequentar bibliotecas pode efetivamente nos tornar menos solitários.
Além disso, em um país como o Brasil, que o livro ainda é visto como um bem de consumo luxuoso e que dificilmente integra o rol das despesas corriqueiras dos lares, muitas vezes por questão de necessidade mesmo, o papel da biblioteca pública fica ainda mais inconteste. A maioria delas exige poucos dados para fazerem cadastros que dão acesso a todo o acervo e à internet, para consumo na própria biblioteca e para empréstimo. É um esforço muito pequeno que, segundo a mesma pesquisa mencionada anteriormente, apenas 8% dos leitores fazem. Ou seja, infelizmente, as bibliotecas já não andavam muito frequentadas desde antes da pandemia.
Por fim, a sala silenciosa dos livros no final do corredor pode se transformar em algo para muito além de um arquivo onde estão guardadas as memórias escritas de um povo ou ainda apenas um salão de estudos. A biblioteca tem condições suficientes para entrar na linha de frente junto às comunidades, dando às pessoas, através da mediação da leitura, vocabulário e condições para compreenderem melhor a si e também a sociedade da qual fazem parte. O silêncio e o barulho da sala de leitura possuem um potencial imensamente transformador.
P.S.: um agradecimento às bibliotecas mencionadas e suas respectivas equipes; sem elas este texto talvez nunca tivesse existido. Um agradecimento especial também para Fabiana e Simone, que foram as bibliotecárias mais próximas de mim durante a pandemia — apesar de toda a distância, e contribuíram sobremaneira para esse texto.
O artigo publicado é de inteira responsabilidade exclusiva de seu autor e não representam as ideias ou opiniões do site EMDIAES.