Algumas histórias são reais demais para serem inventadas
Algumas histórias são reais demais para serem inventadas
Neil Gaiman, autor renomado de livros de fantasia, diz que “seres humanos são criaturas contadoras de história”. Talvez seja por isso que qualquer pessoa comece a usar recursos narrativos que vemos em filmes e literatura para contar episódios corriqueiros de suas vidas — tornando-os um pouco menos corriqueiros. Nem sempre os fatos importantes são narrados direto ao ponto, é preciso criar o clima para chegar neles; e se a história tem algo de assustador, enfatizamos as partes insólitas para aumentar o suspense. E isso sem falar dos excelentes contadores de piada, que conseguem dizer as coisas mais absurdas deixando a risada apenas para a hora certa. Tudo isso é recurso narrativo, talvez você mesmo use alguns com naturalidade.
Essas ferramentas ainda podem ser aplicadas de diversas outras formas. Por exemplo, no filme O Advogado do Diabo, o protagonista estrelado por Keanu Reeves, ao defender um determinado cliente, chama atenção do júri para o fato de o réu ser a escória da sociedade, o que de pior o material humano conseguiu produzir. Incomodado, o cliente não consegue entender a narrativa que o advogado está criando. A de que seu cliente é sim a pior pessoa do mundo, mas isso não tem nada a ver com os crimes dos quais estava sendo acusado. Recentemente, na vida real, vimos no julgamento da tragédia na Boate Kiss de Santa Maria, os advogados de defesa da boate usaram uma carta psicografada de um dos jovens que infelizmente morreu no desastre, não sem uma narração emotiva e uma música de fundo comovente — visível apelo às emoções do júri (não crê? Assista aqui).
Ainda na ficção, há outros momentos do filme nos quais o protagonista faz a mesma coisa, mas este que narrei chamou mais a minha atenção por se tratar de um apelo negativo. Já na vida real, chama atenção a conveniência do tom positivo no depoimento escrito e editado em um livro de uma alma desencarnada quanto à tragédia que a vitimou. A questão aqui, importante de dizer, não tem nada a ver com a crença na encarnação e na comunicação das almas com este mundo, mas sim o seu uso perante o tribunal.
Ainda em O Advogado do Diabo, existem outras sacadas interessantes que ocorrem em uma história ficcional. Uma óbvia é o fato de o diabo se chamar John Milton em referência ao clássico da literatura Paradise Lost, que remonta a queda de Lúcifer. Outra, um pouco menos óbvia, é o nome do protagonista, Lomax, que tem a sonoridade das palavras “low” e “max”, traduzidas respectivamente como “baixo” e “máximo”, uma espécie de predição da trajetória do personagem. Estes nomes foram escolhidos propositalmente pelos escritores e roteiristas das obras; contudo, no que estava pensando a mãe do bebê quando lhe deu o nome de “Lecione”? Provavelmente não que a criança acabaria se tornando professora — e sim, esta é uma história real.
Talvez, uma explicação plausível para nossa espécie ser tão boa contadora de histórias, além é claro de poder se comunicar de maneira articulada através da fala e da escrita, sejam os neurônios espelho. Responsáveis em grande parte pela aquisição de linguagem e, em seguida, para desenvolvimento de outras habilidades: a empatia entre elas. É o desenvolvimento dessas partes do nosso cérebro que nos ajuda a nos colocar no lugar de outra pessoa, tentar pensar e sentir como o outro. A ficção estimula diretamente esses neurônios, porque é através deles que interpretamos as histórias que estamos consumindo — eles também causam a estranha sensação de frio quando estamos assistindo um filme sobre nevasca, mesmo que esteja fazendo calor. Se há algum aprendizado em alguma história que queiramos imitar, serão eles os responsáveis pela imitação.
Estes são exemplo pequenos, mas que podemos aplicar em diversos outros momentos da nossa existência, para deixar claro que existe ficção na vida real e a vida real às vezes parece uma obra de ficção.
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