O perfil se repete em números gerais: de todas as mulheres que sofreram qualquer tipo de violência doméstica no ano passado, 60% têm filhos
Em 80% dos lares brasileiros onde um homem tentou matar uma mulher com uma faca ou uma arma de fogo, essa vítima era mãe e, provavelmente, os filhos assistiram às agressões. Esse é um dos dados apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado hoje pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e se refere ao ano de 2020, que foi marcado pela pandemia de covid-19.
O perfil se repete em números gerais: de todas as mulheres que sofreram qualquer tipo de violência doméstica no ano passado, 60% têm filhos. Mães também representam 74% das vítimas de estrangulamento e tentativa de espancamento, 65% das que são agredidas com tapa ou soco, empurrão ou chute e 65% das que sofrem ameaça de agressão física — o que também é considerado crime, além de ser violência psicológica.
“Os dados mostram que a violência doméstica não é só contra uma mulher, é intrafamiliar. Pode ser que esse homem também agrida os filhos mas, mesmo se as crianças só presenciaram as agressões, são vítimas indiretas”, afirma Samira Bueno, diretora executiva do FBSP. “E é preciso lembrar que estamos falando de 2020, ano em que as escolas foram fechadas e essas crianças ficaram dentro de casa, sem ter com quem conversar sobre o que estão vivendo. Como lidam com isso? É um dano psicológico enorme.”
Responsabilidade pelos filhos faz vítimas temerem denunciar
Ser mãe e se ver como a responsável pela criação dos filhos são fatores que deixam a mulher mais vulnerável à violência doméstica. “A precariedade das situações socioeconômicas e da vida financeira da família, intensificadas no período da pandemia, fizeram com que elas ficassem ainda mais expostas”, explica Samira.
“Se o grande desafio é colocar comida na mesa, elas engolem o choro e aguentam a violência pela própria sobrevivência e dos filhos. As que têm autonomia financeira, por exemplo, são menos vítimas de violências letais como as que não têm”, explica Samira.
Juíza designada da Casa da Mulher Brasileira em São Paulo, Danielle Galhano Pereira da Silva, explica que a dependência econômica do marido é um dos principais fatores que impedem a mulher de sair de um casamento violento.
Muitas vezes, a situação profissional também tem a ver com o fato de ser mãe. “Muitas vezes, elas ficam afastadas do mercado de trabalho e têm uma reinserção profissional mais difícil. Vai depender do marido para o sustento da família”, diz.
E o agressor, ao perceber que a mulher atura a situação em nome das crianças, aumenta o grau de violência gradativamente, indo das ofensas verbais ao feminicídio, que em 82% dos casos é praticado por marido ou ex. “A violência doméstica acontece em uma espiral ascendente. Depois da agressão, vem um pedido de desculpa, aparentemente fica tudo bem. Mas o homem vai voltar a agredi-la fisicamente e com cada vez mais intensidade.”
As especialistas salientam ainda que a maioria das vítimas é negra, moradora da periferia e com baixa escolaridade e já vivem em situação de vulnerabilidade social.
Uma mulher foi morta a cada sete horas em 2020
O total de casos de feminicídio registrados em 2020 pelo FBSP foi de 1.350, o que equivale a uma mulher assassinada por sua condição feminina a cada sete horas.
Os dados sobre registros de agressões físicas praticadas por companheiros ou ex são ainda mais estarrecedores: um boletim de ocorrência é registrado a cada dois minutos e meio, em média.
Em relação a 2019, os assassinatos aumentaram 0,7%, e os casos de violência doméstica, caíram 7,4%, o que não significa menos agressões. A queda pode estar ligada ao isolamento mais rígido no começo da pandemia e, na sequência, às dificuldades financeiras geradas pela crise sanitária, tornando mulheres mais vulneráveis.
Ainda assim, o levantamento mostra que o número de medidas protetivas aumentou em 4%. A medida protetiva foi estabelecida pela Lei Maria da Penha e é uma concessão da Justiça para evitar que o agressor se aproxime ou entre em contato com a mulher.
Como explica Bueno, do FBSP, os dados se referem a mais medidas concedidas por Tribunais de Justiça do que em 2019. “Houve uma sensibilização do do Judiciário. Já que estamos vivendo momento atípico, e a vítima está mais vulnerável, acredito que houve um esforço para oferecer mais mecanismos de proteção a elas”, opina.
Também aumentaram as chamadas à Polícia Militar, para emergências, em 16%. O total foi de 694 mil ligações em 2020, o equivalente a 1,3 ligação por minuto. Lembrando que essas chamadas podem ser realizadas por qualquer pessoa, não necessariamente pela vítima.
“Acredito que a sociedade se envolveu mais com a causa como um todo. Teve muita campanha desde que começou a pandemia, o assunto ficou muito em voga, com órgãos importantes como o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] se posicionando sobre o tema”, afirma Silva. “E espero que o engajamento aumente. Combater a violência doméstica e ajudar uma mulher é um trabalho coletivo.”
Como procurar ajuda
Se você está sofrendo violência doméstica ou conhece alguém que esteja passando por isso, pode ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.
Para denunciar, procure a delegacia próxima de sua casa ou então faça o boletim de ocorrência eletrônico, pela internet. Outra sugestão, caso tenha receio de procurar as autoridades policiais, é ir até um CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) da sua cidade. Em alguns deles, há núcleos específicos para identificar que tipo de ajuda a mulher agredida pelo marido precisa, psicológica ou financeira, por exemplo, e dar o encaminhamento necessário.
Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.