Pandemia de coronavírus ‘interrompeu’ rituais do luto — mas eles continuam importantes, mesmo se feitos virtualmente
O Dia de Finados, de origem católica, deverá ser celebrado com restrições sanitárias por conta da nova doença — diferentes Estados e municípios definiram suas regras. O governo de São Paulo por exemplo, Estado mais populoso do Brasil, anunciou na semana anterior à data que os cemitérios poderão abrir, desde que autorizados também por cada prefeitura. As visitas devem ser feitas de máscara, com acesso a álcool gel e distanciamento social.
A nova doença também tirou a vida de mais de 155 mil pessoas no Brasil, muitas delas com despedidas interrompidas pelas restrições impostas pela pandemia, como no acesso de familiares a Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e em velórios com caixões lacrados.
“Estima-se que para cada pessoa que morreu, há de 4 a 10 pessoas enlutadas. Considerando que o Brasil já teve aproximadamente 160 mil mortes por covid-19, há um número muito grande de pessoas para quem será muito desafiador passar por esse Dia de Finados”, aponta Tom Almeida, fundador do movimento inFinito, que trata de assuntos sobra a vida e a morte, organizando eventos e um festival anual.
“Estas pessoas enlutadas não puderam ter os rituais de despedida (por restrições da pandemia) normalmente — participando do enterro com toda a família, vendo o corpo. O processo de luto foi interrompido.”
“Rituais assim são importantes porque trazem a concretude da morte. Por mais dificuldade que um evento assim traga, é importante para o processo do luto. E nestes espaços, você está (em condições normais) ao lado de pessoas amadas e onde você pode liberar seus sentimentos”, explica.
“Por isso, a possibilidade de ida a cemitérios neste Dia de Finados vai ser bastante importante para muitas pessoas.”
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Ainda assim, para aquelas pessoas que não puderem ou quiserem sair de casa, Almeida defende que rituais em homenagem àqueles que se foram sejam feitos mesmo assim. Por exemplo, promovendo um encontro virtual entre familiares e amigos da pessoa querida; para quem for religioso, praticando rituais de acordo com sua fé; escrevendo ou falando sobre a pessoa amada; ou até mesmo fazendo um almoço especial com o prato preferido daquela pessoa, brindando a sua vida.
“Seja qual for, todos os rituais são importantes, pois ajudarão no processo do luto.”
‘Maior homenagem de velas do mundo’
Presidente da Associação Cemitérios e Crematórios do Brasil e do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Acembra-Sincep), Gisela Adissi afirma que, para estes locais, não há data no ano como o Dia de Finados — seja no volume de pessoas reunidas de uma só vez ou estrutura que isso exige, da segurança à limpeza.
Por isso, a data costuma ser organizada com cerca de três meses de antecedência pelos cemitérios, mas neste ano Adissi relata que, diante das incertezas, as administrações desses lugares se prepararam para ter “plano a, b, c”.
A depender das regras locais, muitos deles vão abrir. Ainda assim, a Acembra-Sincep organizou, durante a pandemia, uma campanha estimulando os cemitérios a organizarem painéis virtuais com fotos e mensagens enviadas pelas famílias e amigos em homenagem aos entes queridos.
O grupo Cortel, por exemplo, está preparando “a maior homenagem de velas do mundo” para a data, com 8 mil delas. Com vários cemitérios pelo Brasil, o grupo também terá transmissões ao vivo e online de palestras e cultos no Dia de Finados, além de estar recolhendo imagens e textos sobre pessoas a serem homenageadas.
Adissi acredita que, mesmo com a organização de celebrações virtuais, as visitas presenciais na data serão numerosas.
“Acredito que haverá um contingente maior de pessoas, por conta de tantos óbitos por covid-19. Muitos deles não puderam ser homenageados, lutos não foram vivenciados. A liberação (de visita, em alguns lugares), somada aos ritos que não aconteceram antes, vai gerar essa espécie de grito reprimido daqueles que não puderam honrar quem perderam na pandemia.”
‘Honre todos os sentimentos que aparecerem’
Para Adissi, que administrou cemitérios por 18 anos anos, o Dia de Finados não é apenas de lamentações.
“Da minha experiência, é também uma data festiva, de muito significado para quem vai. Sempre me chamou a atenção o hábito de muitas pessoas que vão ao cemitério na parte da manhã, com roupas mais velhas, preparadas para fazer uma espécie de faxina com uma ou duas pessoas da família. Elas fazem o ritual de limpeza, colocam flores, voltam para casa e almoçam. De tarde, retornam ao cemitério com toda a família e mais arrumadas. Obviamente não é um dia feliz, mas também é mais do que lamentação. Tem um feriado, a família está reunida.”
Tom Almeida destaca, por sua vez, que a influência cultural do catolicismo no país ressalta emoções difíceis nesta data — que são preponderantes quando o assunto é a morte, como mostrou uma pesquisa de 2018, segundo a qual os brasileiros a associam a sentimentos de tristeza (63%), dor (55%), saudade (55%), sofrimento (51%) e medo (44%). Em percentuais menores, estão sentimentos como a aceitação (26%) e libertação (19%).
“Outras culturas celebram também a vida da pessoa que foi embora, não pesando apenas para a morte. No luto, existe dor, mas também amor, gratidão, cumplicidade. Não é minimizar o sofrimento, mas considerar que a experiência não se limita a ele. Tudo cabe (na experiência do luto)”, diz o fundado do movimento inFINITO.
Para a segunda-feira, Almeida aconselha que pessoas vivendo a dor e a saudade “honrem todos os sentimentos que aparecerem”.
“Pode estar triste, com raiva, muita saudade, gratidão. Todos os sentimentos estão certos porque o luto é muito particular. E ele é um processo que exige transformação — a dor faz que tenhamos que achar recursos e autoconhecimento para readequar a vida quando alguém já não está mais por perto. Às vezes, a dor ocupa todos os espaços. Depois, ela ocupa um lugar”, afirma, reforçando porém que cada experiência é única.
Ele lembra por exemplo de uma postagem recente de uma amiga que contou como o Dia de Finados era o único que conseguia reunir toda a família — começando com reverências e terminando com um grande piquenique, onde as histórias dos antepassados são contadas e celebradas.
Almeida diz também que lidar com o luto não tem prazos: a saudade pode apertar em relação a alguém que foi embora há pouco tempo, mas também há muitas décadas.
“Na verdade, o luto nunca acaba – ele encontra o seu lugar. Vive-se bem, mas uma música ou um cheiro podem ‘apertar’ o botão da dor. Só que, no início, parece que aquele botão está sempre ativado.”
Se em 2018 a pesquisa nacional sobre o luto mostrou que, para 48% dos brasileiros, falar sobre a morte é algo depressivo, e para 28%, mórbido, Almeida diz ter a impressão de que, pouco a pouco, as pessoas estão se abrindo mais para falar sobre o assunto.
E a pandemia de coronavírus parece, em alguns casos, ter empurrado essa conversa.
“Percebi que existe uma urgência de se falar sobre o viver e o morrer. E não existe barreira para isso acontecer — mesmo com barreiras virtuais, as pessoas estão abertas a falar, desde que tenham um espaço de confiança e se sintam acolhidas.”
Por Mariana Alvim / BBC News Brasil